Adotado em todo o mundo para garantir o isolamento social, o home office desperta sentimentos dúbios entre fãs e críticos. De um lado, há uma inegável praticidade. Do outro, pesa a ausência do convívio social e a dificuldade em separar o tempo e espaço voltados para o trabalho da vida pessoal, em meio ao mar de incertezas da pandemia.
No caso brasileiro, somente uma parcela dos cidadãos possui o privilégio de trabalhar à distância. Em novembro do ano passado, o contingente de trabalhadores em home office representava 9,1% dos 80,2 milhões de ocupados e não afastados. Mais de 7,3 milhões de pessoas, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Entre eles, está Carla*, de 28 anos, que trabalha em uma agência de relações públicas e está há um ano sem ver as paredes do escritório. A jovem não imaginava que o home office duraria por tanto tempo, nem que viria cheio de dificuldades, como a maior carga de trabalho, gastos adicionais e problemas de infraestrutura. Reclamações constantes entre profissionais de diversas áreas.
“Cada vez mais temos gastado nossa energia. Tanto física quanto de luz, assim como com internet e telefone para conseguir continuar trabalhando. Eu vi empresas que deram melhores cadeiras, pagam vale internet e um novo computador, mas a minha não fez isso, infelizmente”, lamenta Carla.
“Muito do meu estresse e da minha ansiedade no home office se dão pelo fato do computador não funcionar, da internet não estar boa. E teoricamente não devia ser um problema meu… Se eu estivesse na empresa e a internet e o computador não funcionassem, seria um problema deles”, observa.
Outro ponto delicado que a profissional ressalta é o desrespeito à carga horária de trabalho e o fluxo intenso de mensagens a todo momento, o que, somado ao contexto geral, a levou a desenvolver a síndrome de Burnout – um estado de estresse crônico e de exaustão física e mental.
“Às vezes, era 22h era sábado ou domingo e estavam me ligando, falando de trabalho. Coisas que não eram urgentes. Até aceitaria se fosse, mas eram detalhes ou algo do gênero. Apesar de explicarmos aos clientes e colegas que não é para trabalharmos fora do horário, virou uma área cinza, ninguém sabe direito o limite”, conta Carla, que, após solicitar repetidamente, recebeu um celular corporativo há um mês.
“Hoje consigo desligar no fim de semana e depois do horário de trabalho. Ainda assim mandam mensagem, mas só vejo no dia seguinte. Tenho que ter liberdade, mesmo tendo que trabalhar onde moro”.
O relato de Carla expõe os efeitos colaterais de trabalhar em uma modalidade sem regulamentação, onde as regras e direitos da relação empregador-empregado não estão claramente estabelecidos. Principalmente quando leva-se em conta que parte considerável desses atores foram pegos de surpresa pela pandemia.
No Brasil, o teletrabalho foi incluído na legislação por meio da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/17), e é previsto pelo artigo 75 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
O texto define o trabalho remoto como a “prestação de serviços fora das dependências do empregador com a utilização de tecnologias” e estabelece negociações por meio de acordos individuais.
De forma pontual, o artigo determina questões relativas à aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos e infraestrutura necessária, ou reembolso por despesas, devem ser previstas em contato escrito.
Segundo analisa José Eymard Loguércio, advogado trabalhista, a reforma do governo Temer citou o teletrabalho de maneira genérica e seguiu a lógica de liberar modelos flexíveis de contratação e de prestação de serviços para as empresas, deixando de lado questões importantes como a própria jornada de trabalho.
“A garantia de uma jornada máxima de 8 horas diárias e 44 semanais está na Constituição e é de longa data. É uma necessidade de equilibrar vida profissional e vida pessoal, assim como as pausas para alimentação e descanso, uma garantia de saúde física e emocional”, ressalta Loguércio.
Outro elemento crucial envolve os custos com a infraestrutura.“Essa separação também precisa ser regulada para que o empregado não assuma responsabilidade que é do empregador. A nossa legislação falha nos dois pontos e falha propositalmente. Vale lembrar que a reforma trabalhista veio com o discurso de ‘baratear’ a mão de obra. E, ao fazê-lo, traz consequências ruins para o trabalhador”.
O especialista em Direitos Humanos do Trabalho e Direito Transnacional aponta que os efeitos negativos do home office podem ser mitigados com o aperfeiçoamento da legislação e regulamentação dos diferentes setores por meio da negociação coletiva com sindicatos.
Ele cita a obrigatoriedade de pausas, algum tipo de controle de jornada, pagamento de hora extraordinária, quando for o caso, o estabelecimento de maior responsabilidade para o empregador e a proteção da saúde com regras de ergonomia, como alguns pontos centrais para o trabalho remoto.
O exemplo vizinho
Enquanto o Brasil patina na questão, a Argentina aprovou uma lei que regulamenta o teletrabalho em julho de 2020. As normas equiparam direitos e obrigações dos funcionários que fazem home office dos que trabalham pessoalmente e determina que o empregador deve arcar com toda a infraestrutura necessária para o trabalho, desde instalação a manutenção e reparo dos equipamentos.
A lei passou a valer em março deste ano, já que o projeto previa entrar em vigência em 90 dias após o fim da quarentena contra a covid-19, o que aconteceu no fim de novembro do ano passado.
Em entrevista ao portal Brasil de Fato, a economista Sofía Scassera, assessora do senador Daniel Lovera, eleito pela província de Pampa e atual presidente da Comissão Laboral do Senado Argentino, ressalta a importância do projeto principalmente porque muitos setores devem manter o trabalho remoto total ou parcial no pós-pandemia com a finalidade de reduzir custos.
A regulamentação aprovada vale para novos contratos e coloca os sindicatos como protagonistas das negociações coletivas e da fiscalização para garantir que os direitos no ambiente do home office se cumpra.
Scassera afirma que um dos principais aspectos da lei é que o teletrabalho deve ser uma escolha do funcionário.
“Muitas das coisas que estão na lei devem ser negociadas coletivamente por meio das convenções de trabalho. Seguiremos o príncipio da optabilidade, onde o trabalhador pode optar se quer teletrabalhar ou não. Se sim, tem que expressar esse consentimento por escrito. É muito fácil mandar trabalhar em casa se você tem um lugar preparado para poder fazer, um escritório e um computador. Mas a realidade é que a maioria dos lares argentinos não contam com infraestrutura básica e por isso a optabilidade é fundamental”, explica.
Outro pilar da regulamentação é o direito a reversibilidade, ou seja, o direito de retornar ao modo presencial a qualquer momento caso seja a vontade do trabalhador.
A economista argumenta que o direito a reversibilidade é fundamental por compreender que a vida e a trajetória laboral dos trabalhadores mudam, e que outros fatores podem estabelecer a necessidade de se voltar ao trabalho presencial.
A realidade é que a maioria dos lares argentinos não contam com infraestrutura básica e por isso a optabilidade é fundamental
Há também uma questão feminista por trás da defesa, já que havia receio de que trabalhadoras que optaram pelo teletrabalho para ampliar a licença maternidade ou ficar mais tempo com os filhos não tivessem a possibilidade de retornar ao posto externo e ficassem presas à dinâmica do cuidado familiar e do lar.
Scasserta também destaca que, além de assegurar o direito ao descanso e infraestrutura, a Lei do Teletrabalho trouxe novos dispositivos para a legislação argentina. Entre eles, o reconhecimento das tarefas de cuidado de crianças, idosos ou outras pessoas em situação de vulnerabilidade, permitindo ao teletrabalhador escolher pelos horários mais apropriados para cumprir a jornada, e o direito à desconexão digital.
“O direito à desconexão digital é o direito de um trabalhador não receber mensagens fora de seu horário de trabalho por parte do empregador. É uma maneira de ganhar soberania, recuperar tempo livre de qualidade. Esse direito foi incluido na lei do teletrabalho mas atualmente existe um debate no Congresso para que ele chegue a todos os trabalhadores da República Argentina”.
A lei também regula a proteção de dados e impede o uso de softwares para vigilância que violam a privacidade do trabalhador.
O direito à desconexão digital é o direito de um trabalhador não receber mensagens fora de seu horário de trabalho por parte do empregador
Aqui no Brasil, existem alguns projetos em tramitação no Congresso Nacional que abordam o tema, como o PL 3.512/20, do senador Fabiano Contarato (Rede/ES). A proposta também obriga o empregador a fornecer e manter a infraestrutura necessária para o home office e a reembolsar o empregado pelas despesas de energia elétrica, telefonia e internet.
Já o PL 5581/2020, que também versa sobre o assunto, foi apresentado pelo deputado Rodrigo Agostinho (PSB/SP) e está nas mãos da Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados, sem data para ir a plenário.
Home office para quem?
É inegável que a pandemia do coronavírus escancarou os abismos sociais no Brasil, a começar pela divisão entre os trabalhadores que podem permanecer em casa, mais protegidos de uma possível infecção, daqueles que estão em setores essenciais.
A partir de dados da PNAD Contínua de 2018, o pesquisador Jorge Alexandre Neves, professor titular de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), buscou desvendar quem são os indivíduos em ocupações com alta ou baixa probabilidade de realização de teletrabalho.
“A pandemia revelou e acentuou a profunda desigualdade no mercado de trabalho brasileiro”, afirma Neves. “Apenas um pequeno percentual dos trabalhadores pode fazer o teletrabalho, geralmente pessoas em maior nível de qualificação. São pessoas de nível socioeconômico mais alto, com maior escolaridade, em sua maioria brancas, que possuem essa perspectiva de realizar o teletrabalho. Enquanto os negros, não. Um processo que agudiza a desigualdade no mercado de trabalho pelo nível socioeconômico, por raça e por gênero”, complementa.
De acordo com as informações levantadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), brancos têm uma probabilidade bem maior (31%) do que a dos negros (17,53%) de estar em uma ocupação que permite a realização de teletrabalho.
Em relação a gênero, as mulheres têm uma probabilidade (31,20%) maior do que a dos homens (18%) de estar em funções na qual o home office é possível. No entanto, o trabalho doméstico e outras tarefas de cuidado que recaem exclusivamente sobre as mulheres são um grande desafio no trabalho remoto.
Bárbara Castro, pesquisadora da sociologia do trabalho e docente da Unicamp, comenta que boas condições para trabalhar não perpassa somente pela garantia de infraestrutura mas pelas condições exister um ambiente proprício para o trabalho, sem interrupções. Algo que é ainda mais difícil para o gênero feminino.
“As mulheres, quando estão em casa, articulam trabalho e família o tempo inteiro, sobrepostos. A grande maioria delas não tem um espaço reservado e mesmo quando tem, as que possuem família, relatam terem suas rotinas interrompidas o tempo inteiro pelas demandas familiares, existe uma sobreposição”, explica Castro.
Ela afirma que durante as pesquisas que tem realizado é comum que a maioria dos homens tenham um escritório ou outro espaço reservado, e que o relato de interrupções são menores ou inexistentes para eles. Exatamente por isso, os homens afirmam ser mais produtivos trabalhando em casa enquanto as mulheres sentem que rendem menos.
Castro aponta ainda que há uma romantização no teletrabalho que a pandemia está ajudando a desconstruir e expondo as fragilidades acentuadas pela ausência de apoio e suporte por parte do Estado e das empresas. Segundo diz a docente, na França, por exemplo, mesmo antes da pandemia, quando um funcionário entra em regime de teletrabalho, o sindicato patronal e dos trabalhadores verificam há ambiente adequado para o cidadão exercer a jornada.
“Isso é o que deveria acontecer no Brasil mas está longe de ser realidade. Não fornecem, equipamento, energia. É muito raro encontrar casos, mesmo nos setores mais organizados, quem dirá fiscalização para condições adequadas de trabalho. O que mais temos relatos é de pessoas trabalhando no sofá, na mesa de refeição, deitados na cama. Isso durante um ano e não sei mais quanto tempo de pandemia, pode gerar uma série de lesões pela realização inadequada do trabalho”.
“O teletrabalho veio para ficar”
Considerando a ausência de perspectiva de retorno à normalidade diante do descontrole da pandemia e a redução de custos das empresas, o home office tende a se fortalecer no país. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou, por exemplo, que o número de empresas que pretendem adotar o teletrabalho no pós-pandemia deve crescer 30%.
Outro levantamento do Ipea constatou que o home office poderá ser adotado por 22,7% das profissões no Brasil, alcançando mais de 20,8 milhões de pessoas.
Na opinião de José Eymard Loguércio, a mudança no mundo do trabalho acentuada pela covid-19 vai exigir uma forte artigulação pela regulamentação, a exemplo do que ocorreu na Argentina.
“O teletrabalho veio para ficar. Isso acarreta uma mudança cultural e social profunda nas relações de trabalho, mas também na vida das pessoas. Há muito por fazer. Não tenho dúvida que viveremos tempos de experimentação, que exigirá muita atuação dos sindicatos e muita organização solidária dos trabalhadores. Foi assim que conquistamos direitos como férias, controle de jornada, 13º salário”, diz.
O advogado trabalhista alerta ainda que o controle por parte das empresas transformou-se em vigilância por meio da tecnologia, uma dinâmica que também deverá ser observada com cuidado no Brasil.
“O empregado, trabalhando em casa, tem a falsa sensação de liberdade e autonomia. Mas há uma vigilância direta e indireta a ser regulada para impedir a máxima exploração do trabalho e, junto com ela, a invasão de privacidade. Uma coisa simples seria o log-in e log-out no sistema como forma objetiva de controle de horários. Mas há ferramentas de vigilância que precisam ser explicitadas. Quais os programas são usados? Qual o limite de uso? Há períodos de conexão e de desconexão? Há direito de conexão e desconexão?”, questiona.
Fonte: Força Sindical